Heroína da Independência, Maria Quitéria de Jesus Medeiros, natural da Bahia (1792), era filha de portugueses partidários da libertação do Brasil de Portugal. Em decorrência disso, ela decidiu envergar um uniforme de voluntário para combater as tropas portuguesas que lutavam em território baiano, mas como o serviço nesse corpo do exército fosse incompatível com o seu sexo, transferiu-se para um regimento de caçadores (soldados destinados a procurar ou caçar os inimigos), em cujas fileiras combateu valentemente até o final de guerra.
Diante desse exemplo, outras mulheres também se alistaram e formaram uma companhia feminina que sob a liderança de Maria Quitéria destacou-se nas ações militares realizadas contra o desembarque dos soldados inimigos nas proximidades da foz do rio Paraguaçu. Uma vez conseguida a vitória, a heroína baiana dirigiu-se ao Rio de Janeiro levando essa notícia ao imperador, sendo por ele condecorado, em 2 de julho de 1823, com a insígnia de Cavaleiro da Imperial Ordem do Cruzeiro, além do recebimento do soldo de alferes, oficial que levava a bandeira na infantaria ou o estandarte na cavalaria, e correspondente ao posto de segundo-tenente.
O jornalista e escritor Hélio Pólvora (1928), baiano que costuma identificar-se como “um pobre homem de Itabuna”, escreveu a biografia de Maria Quitéria, trabalho em que, citando o escritor sergipano Bernardino José de Souza (1884-1949), que descreveu a participação da heroína em defesa da foz do rio Paraguaçu, dá forma e vida aos pensamentos que por certo conviveram com a jovem guerreira em seus momentos de descanso, de calma reflexão ou mesmo grande ansiedade. Como:
Eu gostaria de entrar nua no rio, caso estivesse no sítio do meu pai. Mas estou aqui entre homens, somos todos soldados, e o banho no Paraguaçu é forçado. Os portugueses de uma canhoneira bombardearam Cachoeira, então um bando de Periquitos, e entre eles eu e mais cinco ou seis mulheres, entramos no rio, de culote, bota e perneira, dólmen abotoado e baioneta calada. Queríamos que os agressores desembarcassem para o combate em água rasa da margem. E eles vieram, aos brados. Traziam armas brancas. Alguns as mordiam com os dentes.
O encontro deu-se num banco de areia, com água pela cintura. Senti quando a água fria subiu pelas pernas, abraçou as coxas e espalhou-se pelas virilhas. Um toque frio, desagradável. Com o calor da luta, tornou-se morno. E houve um instante em que eu tinha água pelos seios. Senti que os mamilos se enrijeciam sob a túnica. Pensei outra vez no sítio, na rede em que costumava embalar-me. Ali tudo era cálido, os panos convidavam ao sono. Aqui, luta-se pela vida, pela nossa Cachoeira, pela Pátria. Mas uma voz secreta me sopra que também luto por mim.
Estou guerreando, sim, para libertar Maria Quitéria de Jesus Medeiros da tirania paterna, dos sofridos afazeres domésticos, da vida insossa. Ah, eu combato, com água no nível dos peitos, pela libertação da Mulher, pela nova Mulher que haverá de surgir. Minha baioneta rasga o ventre de um português que não quer reconhecer a Independência do Brasil gritada, lá no Sul, pelo Imperador D. Pedro.
Ou, ainda:
O Imperador me põe a condecoração. Tremo toda. Ele entende o que se passa comigo e sorri.
– Parabéns. A senhora é uma heroína. A Pátria lhe será eterna devedora.
– Cumpri apenas meu dever de brasileira – consigo balbuciar em resposta.
O Imperador curva-se e vai retroceder. Faço-lhe um gesto. O homem poderoso se detém.
– Posso ser-lhe útil em algo mais, senhora?
– Quero pedir-lhe um obséquio, um grande obséquio…
– Queira dizer-m’o.
– Quero que o senhor peça perdão, por mim, ao meu velho pai.
– E por que motivo? – indaga o Imperador.
– Porque fui-lhe desobediente, fugi de casa para entrar na guerra – eu lhe digo, toda ruborizada.
O Imperador sorri de leve.
– Está perdoada. Farei o senhor seu pai sabedor do meu perdão.
O Imperador levanta a mão sobre a minha pessoa, em sinal de bênção.
Maria Quitéria retornou à Bahia levando uma carta do Imperador ao seu pai, pedindo-lhe que a perdoasse pela desobediência. Atendida em seu desejo, casou-se logo depois com um namorado antigo, o lavrador Gabriel Pereira de Brito, com quem teve uma filha, Luísa Maria da Conceição. Enviuvando, mudou-se para Feira de Santana, onde tentou receber parte da herança do pai que havia falecido em 1834, mas desistindo do inventário foi embora com a filha para Salvador, onde morreu em 19 de agosto de 1853, quase cega em total anonimato.
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